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Artigos sobre Amazofuturismo

como nasceu o amazofuturismo

O nascimento do Amazofuturismo

por | jun 20, 2022

Desde o seu surgimento, a ficção científica tem evoluído conforme evolui também a nossa compreensão do Universo, ou seja, o avanço tecnológico e científico influencia diretamente as artes, dando a elas material rico para que a imaginação trabalhe. O século XX foi um terreno fértil nesse sentido porque nele se observaram mais avanços da ciência do que em todo o resto da história da humanidade. Logo, é natural perceber que tais progressos tenham feito eco nas artes.

Capa do livro Amazofuturismo do escritor Rogério Pietro.

Se tomarmos – como muitos sugerem – o surgimento da ficção científica com a publicação do livro Frankenstein ou o Prometeu Moderno, de Mary Shelley em 1818, veremos ali a preocupação humana com a descoberta de um processo científico capaz de dar vida a um ser feito com pedaços de corpos. Um século depois, a peça de teatro RUR: Robôs Universais de Rossum (1920), do dramaturgo tcheco Karel Čapek, deslumbrava o mundo com a ideia de pessoas sintéticas produzidas em larga escala numa fábrica. Era a revolução industrial retratada nas artes. Revolução essa que dependeu de progressos tecnológicos, dos motores a vapor e das máquinas produtivas.

A partir de então, descobertas em todas as áreas proliferaram como vírus infectando células. No campo da física, da química, da astronomia, da biologia e até na computação apareceram nomes de cientistas que revolucionaram profundamente nosso entendimento do todo. Foi então que os artistas, autores e roteiristas se alimentaram desses frutos para criar enredos de viagens no tempo, dimensões paralelas, jornadas para mundos ou galáxias distantes, criaturas exóticas sendo criadas em laboratório, mutações, mundo virtual, visitas de seres de outros planetas, o perigo atômico, pandemias devastadoras, a ameaça de cometas se chocando com a Terra, e muitos outros.

A ficção científica passou, então, a se dividir em subgêneros. Das máquinas a vapor surgiu o steampunk (ou vaporpunk) com seu visual inconfundível da Era Vitoriana. Os avanços velozes da computação influenciaram o surgimento do cyberpunk, que tem Neuromancer (William Gibson, 1984) como o seu expoente e um visual metropolitano, chuvoso, cinzento, altamente tecnologizado e degradado, um aspecto típico dos anos 80. Já o dieselpunk se apresenta com motores movidos a combustão e arranha-céus claramente nova-iorquinos. No biopunk somos confrontados com experimentos – muitas vezes catastróficos – de engenharia genética. Seguindo a linha vitoriana, mas incluindo o visual de engrenagens de relógios, ponteiros e esferas metálicas movidas a corda, temos o clockpunk. A nanotecnologia obviamente influiu no subgênero chamado nanopunk. O afrofuturismo surgiu com as cores vivas da África e a alta tecnologia das civilizações avançadas, sendo o Pantera Negra, criado por Stan Lee e Jack Kirby, o representante mais conhecido dessa estética cultural.

Existem outros subgêneros dessa linha da ficção científica. Chamo a atenção para o solarpunk – algumas vezes chamado de greenpunk –, no qual as histórias focam a questão ambiental. A principal fonte de energia é a solar. As cidades são grandes, limpas, organizadas, inteligentes, claras, iluminadas. Os edifícios têm formas orgânicas, leves, com predomínio do vidro e do metal. Existem um toque de utopia no solarpunk.

E foi justamente influenciado pelo solarpunk que o ilustrador brasileiro João Queiroz criou imagens de indígenas amazonenses inseridos em um conceito futurista. Ocas e aldeias ganharam um visual tecnológico e entrelaçado com a flora e a fauna. Braços mecânicos com tecnologia indígena se misturavam ao vermelho e o azul das araras e ao verde das matas. O visual iluminado, positivo e exótico imediatamente encantou os fãs da ficção científica que, em algum momento, passaram a chamar aquilo de amazofuturismo.

Tão logo eu fui apresentado ao novo conceito visual, percebi as inúmeras possibilidades que aquilo trazia para a ficção científica brasileira e mundial. As ideias brotaram em minha cabeça quase espontaneamente, logo formando uma verdadeira selva de elementos. Comecei escrevendo um conto amazofuturista, e logo percebi que havia tanta coisa a ser explorada naquele universo que um conto seria muito pouco. Deixei o rio fluir e, quando percebi, tinha um romance em minhas mãos. Sendo o primeiro livro amazofuturista de narrativa longa da história, decidi manter o nome provisório que eu havia dado a ele desde o início: Amazofuturismo.

Ao criar aquele mundo novo, uma mistura de natureza da selva amazônica com alta tecnologia futurista e conceitos de ecologia, fui aos poucos definindo o que seriam as bases do subgênero nascente. Até então não havia um terreno firme sobre o qual construir, mas o solo era fértil para germinar as sementes. Por isso, eu fiz a mim mesmo uma pergunta muito importante, e creio que todo artista que pretenda desenvolver algum trabalho amazofuturista também deveria se fazer essa mesma pergunta, de maneira muito séria, obtendo uma resposta sincera e baseada na lógica e na própria ficção científica.

A pergunta é: o que é e o que não é amazofuturismo?

Tudo bem, são duas perguntas, mas elas se complementam. Responder uma é entender a outra. Mas nunca é demais explicar as coisas até a exaustão, afinal estamos falando de um conceito.

Pensando seriamente no assunto, e observando uma ausência de um conceito definido, passei para o papel o que chamei de Quatro Pilares do amazofuturismo. Eles pretendem abranger todas as possibilidades do subgênero, e ainda possuem a função de evitar que as narrativas futuras o desviassem do que ele nasceu para ser.

Em primeiro lugar, é importante reconhecer que o amazofuturismo é um conceito estético dentro da ficção científica. Assim como o steampunk se reveste da estética da Era Vitoriana, assim como cyberpunk traz a estética de uma grande metrópole asiática, todos esses subgêneros trazem um visual que os caracteriza. Com o amazofuturismo não é diferente. Nascido das artes plásticas, é natural que ele tenha uma personalidade única e marcante, algo como uma assinatura de formas e cores.

O visual da selva deve estar presente (lembrando que selva é o termo utilizado pelos biólogos para definir uma floresta mais densa e com riqueza de bioma). O verde exuberante das árvores de até oitenta metros de altura, as cores intensas das penas dos pássaros, o amarelo radiante da onça-pintada, e o azul brilhante do céu são mais do que o pano de fundo das histórias amazofuturistas. Eles são a própria vida, são elementos inseparáveis da existência, como os próprios indígenas daquela região nos contam. As árvores, os animais, as pedras e o mesmo o solo enquanto entidades fazem parte das crenças de diversos povos originários. Logo, o visual não pode ser menosprezado por uma visão eurocêntrica que separa os humanos da natureza, como se fossem coisas distintas e apartadas por um muro. Nem tudo o que acontece no universo acontece apenas com os humanos, e os indígenas têm uma noção muito enraizada disso.

Nesse contexto, a selva amazônica se apresenta cheia de possibilidades. E nasce daí o Primeiro Pilar do amazofuturismo: as histórias devem se passar majoritariamente na selva amazônica.

É necessário esclarecer que a selva se estende por nove países. Portanto, não estamos falando do estado do Amazonas, e sim de algo muito maior em todos os sentidos. E, considerando que o subgênero é chamado de amazofuturismo, é daquela região que estamos falando. Mesmo os povos indígenas, reais ou fictícios, retratados nas histórias ou ilustrações precisam viver na selva amazônica. Do contrário não seria amazofuturismo.

Agora é extremamente válido entender que o amazofuturismo não é um manifesto dos (ou pelos) povos indígenas do Brasil. Em primeiro lugar porque ele, sendo um subgênero da ficção científica, não é um texto dissertativo de cunho político ou social (o que define um manifesto). Em segundo lugar, nem todas as 305 etnias indígenas brasileiras vivem na selva amazônica. Para retratar aqueles povos indígenas que vivem em outras localidades do Brasil, já existe o tupinipunk. Portanto, apesar de o amazofuturismo ser uma expressão artística onde cabem as questões sociais e históricas envolvendo os povos indígenas, precisamos reconhecer que essas questões são apenas uma parte do subgênero, e não o todo. E é importante não reduzir esses mais de trezentos povos, cada um deles com suas individualidades, em apenas uma palavra, como se fossem a mesma coisa. Os autores de textos amazofuturistas devem evitar esse neocolonialismo, essa vontade de dizer que todos os indígenas são iguais, porque eles não são.

Fica mais fácil de entender esse raciocínio quando vemos que o steampunk não é um manifesto da Era Vitoriana, o cyberpunk não é um manifesto dos profissionais de tecnologia da informação, e o afrofuturismo não é um manifesto dos diversos povos da África.

O Segundo Pilar é bem calcado na ficção científica. Os elementos tecnológicos e científicos precisam estar presentes.

Aqui precisamos dividir a ficção científica da fantasia. Isso parece simples, mas é muito comum ver autores confundindo uma coisa com a outra. Na fantasia existem elementos mágicos ou sobrenaturais, sem a necessidade de dar explicações lógicas para esses fenômenos. O folclore brasileiro é um exemplo de fantasia. A ficção científica, por outro lado, é o impacto que novas tecnologias ou descobertas científicas (reais ou não) causam no indivíduo ou na sociedade. Portanto, a simples presença de elementos fantásticos ou folclóricos no contexto amazônico ou indígena não define o amazofuturismo.

A presença de tecnologias e de conceitos científicos precisa estar bem estruturada no amazofuturismo. Contudo, não basta retratar povos indígenas usando smartphone, internet ou andando de metrô. Tais elementos típicos da civilização não indígena caracterizariam, antes, uma desaculturação desses povos.

Portanto, os autores do novo subgênero precisam ter criatividade para dar vida a tecnologias inovadoras, o mais diferentes o possível daquilo que temos. Assim, o Segundo Pilar nos diz que ciência e tecnologia são inseparáveis do amazofuturismo – porque é ficção científica –, e que os avanços tecnológicos dos povos indígenas não podem ser iguais aos dos outros povos.

O Terceiro Pilar tem suas raízes no solarpunk. A tecnologia e as cidades amazofuturistas precisam estar em perfeita harmonia com o meio ambiente. A razão para isso é bastante óbvia. Como essas sociedades estão inseridas na selva amazônica, o conservacionismo é fundamental. Se as tecnologias dessas sociedades causassem a degradação da selva, a poluição do ar ou dos rios, estaríamos caindo em algum subgênero “punk”. E este não é o foco do amazofuturismo. Além disso, o componente indígena do subgênero pede o respeito à natureza, a preservação da fauna e da flora.

O Quarto Pilar é uma mudança de ponto de vista. Enquanto as narrativas anteriores a respeito de civilizações avançadas na selva amazônica eram contadas a partir do olhar do colonizador ou do explorador estrangeiro, no amazofuturismo as histórias têm os povos originários (ou os outros elementos do bioma amazônico) como os protagonistas. Essa nova perspectiva é fundamental para separar o novo subgênero de outras obras, além de dar voz a quem nunca a teve.

O Quinto Pilar tem a ver com a flora e a fauna, reconhecendo que sua importância é tanta quanto à dos humanos.

Colocados esses pilares lógicos, o campo para o florescimento de obras amazofuturistas está aberto. Eles respondem à primeira pergunta e definem o que é o subgênero, além de pincelarem conceitos que nos ajudam a entender o que ele não é. Todavia, se eu fosse colocar apenas uma placa nesses pilares alertando os novos aventureiros dessa selva, eu escreveria nela o seguinte: o amazofuturismo não é um movimento político. Ele não é alheio à luta indígena, mas não se rende a partidos. Ele entende e espelha a causa indígena, mas não é palanque eleitoral. Por isso, os artistas que criam conteúdo amazofuturistas devem lutar com todas as suas forças para impedir que o subgênero seja tomado de assalto por interesses que visam, em última análise, poder e dinheiro público, como tristemente já aconteceu com outros gêneros parecidíssimos.

E foi com base nesses Quatro Pilares que eu escrevi o livro Amazofuturismo. Agora, outros projetos na área vão surgindo com a força necessária para consolidar o novo subgênero.

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